O Corinthians caiu diante do Boca Juniors, Carlos Amarilla caminha entre nós. Tanto do lado brasileiro quanto do argentino, o foco é nele, o árbitro, o homem que, por ver pouco, tarde ou torto, errou num jogo decisivo.
Falamos de conspirações, das limitações de um esporte que reluta em se renovar e, se formos tomados de compaixão, até do destino trágico de um homem condenado a julgar em tempo real. Vemos um Amarilla humano, um Amarilla fantoche, um Amarilla amoral, talvez até um Amarilla trazido do futuro para arruinar sonhos alheios. Topamos com Amarilla no analista, no teatro de bonecos, numa rodada de dados num beco, no portão do aeroporto dizendo “Hasta la vista” antes de embarcar para Assunção: podemos ver Amarilla em qualquer lugar.
O que me impressiona não é que contemplemos essas hipóteses, mas que, após um jogo entre brasileiros e argentinos, estejamos discutindo, enfim, futebol. Por incrível que pareça, não estamos metidos em delírios sobre a suposta natureza corrompida de nossos vizinhos. Por uma vez, pelo menos, parecemos ter deixado de lado as imagens falsas que construímos do nosso lado da fronteira. Vejo nisso uma vitória da civilização.
(Vitória da civilização: não uma Vitória, daquelas de volta olímpica, mas uma vitorinha de meio de campeonato, meio tediosa e revogável. Ainda assim, vitória da civilização: do controle dos impulsos e da identificação com o outro.)
Pois sim. Quando precisamos explicar um revés ou dar conta de qualquer incidente fora de script com a participação argentina, tendemos a recorrer a algo na linha: o jogador argentino depende da catimba; o jogador argentino é violento; se acuado, o jogador argentino vira um animal. Frases assim, em variantes mil, são disparadas no automático por cronistas e por torcedores. Se há uma briga, essa “sabedoria” toma o lugar de qualquer reflexão sobre causas e efeitos. Assim, um, dois minutos depois de um soco ou de uma janela quebrada, agimos como se já soubéssemos tudo que aconteceu: o argentino é o culpado, é ele o criminoso descoberto pelo nosso CSI Mental. Não é preciso ir muito longe para encontrar exemplos.
Tudo se apoia numa mitologia que opõe o brasileiro de bola de meia contra o selvagem de chuteiras argentino. Numa mitologia que já estava ali quando a Argentina jogava o fino do fino, e nós ainda roíamos a rapadura, desde os anos 1940, pelo menos. Numa mitologia que sobrevive à realidade: os jogadores brasileiros são tão ou mais violentos que os argentinos, nossos goleiros fazem tanta cera quanto os deles e, quando podemos, acionamos a ajuda de gandulas, seguranças e torcedores civilizadíssimos contra eles.
É por ver suspensa essa dinâmica num dia como hoje que encontro motivos de otimismo. Falemos do Amarilla. E continuemos a batizar nossos filhos com o nome “Riquelme”.
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OBS 1: Nem menciono aqui o fato de os argentinos andarem mais tolerantes em suas peneiras em relação a jogadores franzinos, mas extremamente habilidosos. Enquanto isso, cortamos cada vez mais talentos por critérios de altura e força.
OBS 2: O blog se chama “Chuteira Preta”. Acredito num futebol simples.
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